9 de janeiro de 2018

Isto não é água, é veneno

É fato sobejamente conhecido pela opinião popular que algo diferente vem acontecendo atualmente em diversas sociedades ao redor do mundo: um modo de pensar cada vez mais voltado para a existência, suas nuances e complexidades, levando teóricos e críticos de diversas partes a orgasmos intelectuais ininterruptos, devido à enorme quantidade de material disponível para pesquisa.

Eu disse “diferente”? O nobre leitor saberá me perdoar: minha intenção era dizer “preocupante”. Explico: há tempos é possível notar que a humanidade caminha para a bancarrota intelectual, mas o pior não é este. O pior é que caminha de maneira mais ou menos consciente, como aquele motorista sonolento que insistiu em ir dirigir mesmo depois de ter passado cinquenta e cinco horas e três minutos acordado. Alguns grupos desta sociedade inclusive fazem questão disso! Como é possível?

Para responder a esta pergunta, é necessário recuar dois mil e quinhentos anos, até a aurora da filosofia grega. As cidades-Estado gregas comportavam uma enorme quantidade de pessoas de diversas partes do mundo, o que fazia com que fossem anunciados lá todos os tipos de pensamento. Durante a virada do período mitológico para o filosófico-científico, dois tipos de cidadãos emergiram nas pólis gregas: os filósofos e os sofistas. Comecemos por estes últimos.

Os sofistas eram mestres na arte da retórica e exímios professores para o cidadão grego que desejasse se tornar um político, por exemplo. Ora, na ágora grega era de muita valia o domínio da linguagem. Vencer um debate era completamente possível pelo simples manuseio correto de artifícios linguísticos, vista que nem todos os que estavam presentes ali eram capazes de discernir quem dizia a verdade de quem meramente utilizava a linguagem de maneira culta para ocultar algum possível vício em seu pensamento. Ou seja, os sofistas ensinavam aos aspirantes a debatedores a vencer debates sobre determinados temas, ainda que sua opinião não restasse verdadeira. Para tanto, eles utilizavam de um artifício ridiculamente simples: a doxa. Esta palavra grega que significa “opinião” era o motor dos argumentos sofísticos, pois estes apregoavam a inexistência de uma verdade absoluta, sendo que esta variava de uma cidade-Estado para outra. Ora, se nada era absolutamente verdadeiro, tudo era opinião e possuía o mesmo peso no debate. Aqui entrava a função do sofista: uma vez niveladas todas as opiniões, aquele que as manejasse melhor e conseguisse mais votos a seu favor vencia o debate.

Em contrapartida, os filósofos gregos eram o exato oposto dos sofistas. Não dominando a retórica, o máximo que os filósofos conseguiam fazer era elaborar questões acerca daquilo que era posto por aqueles. Em seu livro A Filosofia e Seu Inverso, o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho expõe este contraponto de maneira brilhante utilizando o exemplo do sofista Górgias. Logo no início deste diálogo platônico, Sócrates é interpelado por Cérefon acerca de qual pergunta faria ao famoso sofista, de forma que replica que perguntaria quem é ele. Não é necessário pensar muito para chegar à conclusão de que esta é uma pergunta extremamente incômoda, para dizer o mínimo. O caro é leitor é capaz de respondê-la? Quem é você, caro leitor?  Note que não lhe perguntei seu nome nem suas características físicas, seus princípios, seu credo, sua ascendência, sua descendência, nem nada disso. Perguntei-lhe apenas quem você é.

A partir daí, Sócrates, junto a Platão e Aristóteles, amplia o conceito, trazido pelo filósofo Parmênides (530-460 a.C.), da colônia grega de Eleia, de identidade. Junto ao conceito de unidade, trazido por Heráclito de Éfeso, eles formam o que nós conhecemos atualmente como ontologia. A ontologia é a base da filosofia política (no sentido platônico-aristotélico) grega, ou seja, a forma como o cidadão grego conduzia sua vida na pólis. Sim, é isto mesmo: a filosofia floresce em Sócrates como questionamento acerca do próprio ser. “Conhece-te a ti mesmo” é a frase que estava entalhada na rocha frontal do oráculo de Delfos e que é comumente atribuída a Sócrates, afirmando justamente o que dissemos: o conhecimento parte do ser e cada um de nós constitui um ser. Logo, para conhecer algo, devemos estar em unidade com nossa identidade.

Isto implica, obviamente, uma série de complicações. A primeira delas é que não conseguimos até o momento encontrar signos em nossa linguagem que deem conta de expressar aquilo que somos. Porém, esta não era uma preocupação grega. Os filósofos gregos se debruçaram exaustivamente sobre o caminho correto a ser trilhado para que a busca resulte frutífera. Esta afirmação pode soar estranha aos olhos do nobre leitor. Ora, o leitor já deve ter ouvido ou lido em algum lugar que filosofia é dúvida e crítica, pura e simplesmente. Ledo engano, nobre leitor. Sinto te informar.

Como define o próprio Olavo de Carvalho na já citada obra, é fato que a filosofia representava para os gregos “a educação da alma para a busca do eterno Bem”. Que o leitor tire a prova. Toda a obra de Platão e Aristóteles é dedicada àquilo que é verdadeiro, bom e justo, ou seja, os gregos sabiam que por lógica há verdade, bondade e justiça absolutas, em total desacordo com os sofistas. Caso não esteja óbvio para o nobre leitor, explicamos: através da dialética, Sócrates demonstrava que as opiniões de seus debatedores não estavam em pleno acordo com a realidade. Sócrates compreendia a proposição heraclitiana de que devemos “homologar”, ou seja, devemos assemelhar-nos ao lógos, devemos compreender a lógica da realidade para que possamos atingir um conhecimento verdadeiro acerca desta. Ora, se todas as opiniões possuem o mesmo peso, como é possível fazer qualquer afirmação sobre qualquer coisa?

Isto não bastava para os filósofos gregos. Eles observavam a lógica da realidade e percebiam constância na mudança, unidade na multiplicidade e identidade nos entes. Como é possível negar isto? Como é possível negar que o fogo é sempre fogo, ainda que se mova irredutível?

Percebemos que, para os filósofos gregos (cuja obra ainda não encontrou qualquer refutação e provavelmente nunca encontrará), preocupar-se com a mera existência, conforme dito no começo do texto, não era suficiente para encontrar a felicidade plena ou o eterno Bem. A existência física é uma parcela muito pequena e efêmera de nosso ser para adquirir tanta atenção. A pós-modernidade está carregada de um narcisismo gigantesco, onde se acredita piamente que nossos sentimentos são produzidos por nós mesmos para nosso próprio proveito, reduzindo o homem a uma reles pilha de sensações externas, sem qualquer valor interno.

É um imenso clichê o que estou para afirmar, mas olhando para as raízes da modernidade, percebemos que este narcisismo e suas consequências foram causados por eles mesmos e espalhados para toda a humanidade. Ora, ao fracassar em sua tentativa de interpretação dos gregos, os modernos se voltaram para problemas inúteis que os levaram a uma argumentação retroalimentada pelas próprias aporias geradas por eles, culminando nos pós-modernos.

Ora, quem removeu o ser de seu status ontológico e o reduziu a mera res extensa não pode chorar sobre as consequências disto: erro, engano, frustração, decepção, desespero, abandono e tristeza. Aqui resta claro o título deste artigo: devemos ter cuidado ao beber de determinadas fontes, pois podemos estar bebendo veneno ao invés de água.