Colunistas

A vitória dos piores

 

Desde que ingressei na faculdade de Filosofia e comecei sozinho a dar meus primeiros passos em direção a alguma solidez de pensamento, percebi que estava indo de encontro a algo que já estava mais ou menos pré-estabelecido, ou pelo menos era assim que eu percebia aquilo.

Não concordando com o que a maioria de meus colegas aprovava em matéria de conteúdo filosófico, remei por muito tempo contra a corrente de uma cultura de que o filósofo deve ser um pessimista, pois o caráter trágico da realidade não fornecia alternativa. Ora, não era necessário olhar muito longe para perceber a carreira breve de ídolos de uma juventude (que não era a minha) cuja vida ou tinha sido muito curta ou cuja longevidade atestava apenas desânimo, tristeza e desilusão. Isto refletia na interpretação filosófica de meus colegas, mas nunca me afetou. Graças a Heráclito.

Interessado pelo pensamento dos pré-socráticos desde muito cedo no decorrer do curso, encontrei no filósofo do lógos a síntese de algo que me parecia cada vez mais óbvio dentro da realidade da vida humana.

Heráclito era um homem, no mínimo, exigente. O caráter imperativo de alguns dos fragmentos de sua doutrina que chegaram até nós parece demonstrar uma personalidade avessa a tudo aquilo que não constituísse um problema de ordem primária, ou seja, um problema da realidade. O efésio parecia conceber como problemas de ordem secundária os individuais, econômicos, políticos, sociais, etc. não se importando com a opinião de seus concidadãos. Este é um ponto.

Outro ponto interessante a se ressaltar, e que na verdade intencionou este artigo, é a conduta do cidadão grego. Evidenciada nos escritos de Platão e Aristóteles, a vida do homem grego poderia ser resumida a um único aspecto: a qualidade. Ora, é possível notar, pelos escritos dos mencionados autores, que o homem grego, livre ou escravo, era sempre tencionado em direção à primazia da qualidade, ou seja, ele era culturalmente compelido a ser o melhor naquilo que fazia. É óbvio que havia as exceções, pois nenhuma sociedade é perfeita, mas é inegável que o grego era excepcional em praticamente todas as atividades que desempenhava, desde o comércio até a guerra.

Caso o nobre leitor desconfie de nossa afirmação anterior, basta-nos lembrar-lhe que a civilização grega já havia desenvolvido matemática suficiente para representar princípios universais e desenvolvido uma especulação desinteressada da realidade que balizou por muito tempo toda a cultura ocidental, dois mil anos antes de nosso país sequer ser descoberto. Não é possível que isto tenha decorrido de uma sociedade comum ou ordinária.

Podemos perceber, principalmente nos diálogos platônicos, que o grego sempre possuía um referencial de alguém que era o melhor naquilo que fazia, e estes não eram poucos. Sempre que necessário, Sócrates recorria a alguém que representava ou até personificava a atividade que desempenhava na sociedade, qualquer que fosse. Ao confrontar seus interlocutores sobre os assuntos que estes julgavam saber, Sócrates apelava para toda sorte de comparações que pudesse realizar entre estes e outros julgados os melhores naquilo que faziam. Ou seja, o processo maiêutico de Sócrates fazia com que seus interlocutores fossem obrigados a se nivelarem com os maiores dos maiores, sob o risco de serem envergonhados em praça pública, como realmente aconteceu por diversas vezes.

Esta noção é conhecida nos diálogos platônicos como “dialética ascendente” por fazer com que o diálogo estabelecido entre os interlocutores sempre tendesse à elevação da alma destes em direção ao melhor fim, ou seja, à compreensão mais aprofundada e precisa da realidade.

A formação do homem grego, a paideia, consistia de uma educação que o preparava para ser um cidadão completo, ciente de todas as searas de sua realidade, ainda que de maneira resumida ou superficial. Era como uma formação geral em todos os assuntos que diziam respeito à sociedade grega, sendo que o cidadão se especializaria naquela a que fosse destinado por sua família ou com a qual demonstrasse maior afinidade.

Esta formação era fundamentada na percepção grega da realidade, pois aquela sociedade compreendia que havia uma ordem universal a ser seguida, conforme já explicitamos em outros textos: o grego intentava traduzir em sua cultura aquilo que ele percebia na observação do universo. Isto foi fundamental para que esta sociedade se desenvolvesse rapidamente, retroalimentando o avanço da especulação filosófica que potencializou esta cultura.

Recorrendo a Heráclito novamente, concordamos com o fragmento onde ele afirma que para ele um homem equivaleria a dez mil, se fosse o melhor (Bywater, 113. R. P. 31a). A comparação parece ser exagerada, mas é necessário lembrar que Sócrates era um só contra praticamente toda a cidade de Atenas e, ainda mais, que os grandes nomes da História foram pessoas majoritariamente sozinhas em seus ofícios, que ousaram pisar em solo desconhecido, não obstante e principalmente sob protestos da maioria.

Aparentemente, nossa sociedade se esqueceu destes exemplos e decidiu, nem tão recentemente assim, se nivelar por baixo. Como é feita esta comparação, caso não esteja óbvio para o nobre leitor, explicaremos em outra oportunidade. Mas é necessário que isto seja dito. Muito se reclama dos problemas que nossa sociedade enfrenta, mas pouco se percebe das origens destes problemas. Ora, uma sociedade que não possui parâmetro de observação da realidade, que julga que não há parâmetros ou que estes são “relativos”, não pode querer outra coisa senão ruína. Quando não se sabe o que se quer, o que se obtém é nada.

O erro palmar de nossa sociedade é aceitar uma cultura que nada possui de novo e que já estava refutada desde os gregos: a cultura sofística, que reaparece com força total no século passado e encontra esteio ainda hoje, ameaçando se potencializar ainda mais. Eu me pergunto (com medo) como isso será feito.

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos (sim, sempre ele) chama a estes propagadores de informação inútil de “negativistas”, no sentido de que estes apregoam em suas hipóteses pseudo-filosóficas ou pseudo-científicas aquilo que é fundado na negação da realidade. Não deveria ser necessário afirmar os pesares que enfrenta quem trilha estes caminhos. Meus colegas do saudoso curso de Filosofia que o digam.

Parece que ocorre hoje em nossa sociedade uma verdadeira vitória dos piores, mas isto não alarma ninguém justamente porque impera nesta mesma sociedade um ideário de que não há “piores” ou “melhores”. Não poderíamos concordar mais com o filósofo brasileiro quando este afirma que estes negativistas fundam-se em erros básicos de Lógica e Metafísica, e que por esta mesma razão condenam-nas, relegando suas contribuições para a humanidade ao limbo e ao esquecimento, como se fosse possível criar algo a partir do nada a favor do qual advogam.

Conforme já dissemos, do nada, nada pode surgir, e isto não deveria ter que ser ressaltado. A pergunta que resta é a seguinte: até quando permitiremos que nossa cultura seja conduzida por estes termos? O que será necessário para que a sociedade perceba que está atando o nó para sua própria forca?

Aurélio Sampaio Carrilho de Castro Póvoa

24 anos, casado. Natural de Goianésia, atualmente residindo em Goiânia. Vencedor do 1° "Soletrando", no Caldeirão do Huck. Professor de Filosofia e Inglês, discípulo dos gregos e medievais, amante da linguagem e eternamente em busca do Bem Supremo.

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