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Novo Acordo Ortográfico e a VelhaNovaPolítica

 

Confesso que poucas notícias sobre a atuação parlamentar esse ano me causaram tanto estranhamento, quanto a proposta vinda de uma comissão para assuntos educacionais da câmara baixa do Congresso Nacional que propõe o fim do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, firmado há mais de 10 anos e em uso desde então. O tal deputado que propôs isso, é Jaziel Pereira de Sousa, polêmico, como dizem as notícias sobre ele, e aparentemente prático ao decretar que o fim do acordo deveria se dar por causa da sua ineficácia.

Eu, sinceramente, fiquei imaginando como é que esse acordo possa ser considerado ineficiente, aos olhos do congressista. Dizem que houve um debate sobre o tema, que eu não pude acompanhar, claro, televisionado pela TV Câmara. Da boca, pena ou lavra do deputado, que eu não conhecia até então, nunca vi argumento sobre isso. Mas uma pessoa que se autointitula “assessor especial da presidência da república para assuntos internacionais” afirma numa postagem do Twitter que visa mostrar essa ação parlamentar (apoiada pelo governo do executivo) que afirma que o motivo para a proposição do fim do acordo é uma situação dramática de necessidade de proteção da língua pátria. Entre outras coisas, o Acordo estaria atrapalhando o processo de alfabetização de crianças de modo traumático, incluindo dificuldades que antes não existiam. O tal assessor especial afirma exatamente que, num país quem que haja tantos casos de analfabetismo funcional e de fato, complicar a língua não é uma decisão correta.

Olha, é realmente necessário se pensar mesmo nos assuntos linguísticos, nas políticas de acesso à alfabetização. Nunca é demais afirmar que uma boa alfabetização é um investimento infinitamente lucrativo. As comissões da Câmara realmente precisam ficar de olho em tudo o que refere à educação, de olho em possíveis melhorias. Mas será que esse deputado está certo? Do ponto de vista linguístico, o Acordo Ortográfico não é somente uma ação do Brasil visando melhorar o uso da língua pela grande população. Ele é isso tudo dentro de um contexto internacional da utilização de um patrimônio multicultural da humanidade: a nossa língua. Falta a esse deputado e ao executivo saberem o que é realmente a língua portuguesa, seu alcance e sua ação na cultura humana. Uma ignorância tremenda sobre a língua e sua utilização sincrônica leva a ideia estúpida que mudar regras de ortografia dificultam a aprendizagem por meio da alfabetização.

O Acordo Ortográfico modificou menos de cinco por cento de nossos vocábulos e mudou regras de acentuação e a utilização do hífen, por exemplo.O documento simplificou algumas regras de escrita, aboliu o trema, um sinal já em desuso, e ajustou a grafia para que o português pudesse ser uma língua com padronização internacional, podendo ser escrita uniformemente na Europa, América do Sul e África. Assinado por Angola, Moçambique, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe e Portugal, o acordo traz em si certos embates no plano político do uso do idioma. Não contou com uma consulta ampla da população desses países. Foi feito por acadêmicos. A elaboração do acordo contou com dois representantes brasileiros, a acadêmica escritora Nélida Piñon e o linguista e lexicógrafo Antônio Houaiss. Portugal possuía o maior número de elaboradores. Entre portugueses e brasileiros, houve um rumor e certo atrito por causa das mudanças da grafia visando internacionalizar o idioma.

Fora disso, o Acordo é inócuo. Seu impacto nos processos de alfabetização é mínimo, como se nem existisse de fato. O maior impacto do Acordo Ortográfico é sobre os usuários adultos, amadurecidos da língua, pois eles têm de lidar com regras que causam certa confusão, mas não que justifique se criar pânico. O Acordo Ortográfico não mudou as regras básicas de utilização do alfabeto, por exemplo.

Ademais, é importante lembrar que as mudanças são ortográficas, ou seja, mudam a escrita de um mínimo de termos. Nunca sua pronúncia e significado. Ademais, há uma década que esse acordo está em vigência. Modificar a língua, novamente, depois de tanto tempo que ele foi proposto (vinte e nove anos) e após sua aprovação (há dez anos), traria um imenso trabalho de se corrigir a ortografia. O impacto em ter que se acentuar ditongos como em ideia, colmeia me deixa paranoico (não paranóicocom acento agudo na vogal “o”, como antes do Acordo) e desconfortável. A mudança na língua nacional não afeta a soberania, não dificulta a vida do brasileiro, na verdade ela estimulou um estudo maior da ortografia, uma discussão sobre a forma de escrever termos simples, como micro-ondas ou latino-americano, mas jamais colocou em dúvida o significado ou o som das palavras.

A norma culta não é a parte mais democrática da língua. Não pretendo defendê-la, nem sequer defender o Acordo. Esse é fruto de discussões acadêmicas,geralmente afastadas da língua falada e de necessidades mais imediatas de simplificação da escrita, por exemplo, visando a comunicação internacional, visando, acima de tudo, o estabelecimento da língua como uma força cultural no mundo e, em última instância, seu fortalecimento nos lugares onde a língua portuguesa concorre com outras tidas por mais práticas e eficientes. O Acordo tem a ver com o cotidiano da língua onde a norma é exigida por padrão ou por obrigatoriedade. O Acordo pode e deve ser questionado, mas não por uma ação que o mostre como ineficiente em coisas que ele jamais se propôs a fazer.

A ação política em torno do Acordo é, portanto, um uso sofisticado da língua, reflete no ensino de língua portuguesa, mas não aumenta regras e dificulta a alfabetização. Quanto aos usuários profissionais da língua: jornalistas, redatores, escritores, outros artistas, por exemplo, essas pessoas têm ferramentas que auxiliam na escrita correta. São usuários amadurecidos do idioma e podem lidar com isso de modo eficiente.

Talvez a população não esteja entendendo bem essas novas regras, mas a grande maioria que vivia na ignorância de muitas regras da norma culta (e nem por isso deixavam de escrever quando precisava) continua como sempre. O Acordo não foi ineficiente. Muitos, no entanto, jamais sentiram seus efeitos.

Jamais vimos uma dona de casa reclamar que comprou um micro-ondas porque o microondasestava em falta. O aluno que não sabe geografia e hesita em apontar no mapa os países latino-americanos não terá mais facilidade se ler na questão a responder da prova a palavra latinoamericanos. De semelhante modo, o preço da linguiça no açougue não sofreu alta ou baixa por causa da perda do trema. Na verdade, o açougueiro já deveria escrever linguiça sem trema mesmo, ignorando a regra anterior. Teríamos, de fato, um sério problema, caso o Congresso decida e o presidente sancione, que de devacolocar o trema novamente sobre a vogal u da palavra “linguiça”. Mas acho que, dado o nível das discussões presidenciais, Trema sobre a linguiça se tornaria uma espécie de problema. A discussão sobre o Acordo Ortográfico se tornaria uma pauta de costumes. Talvez então o Acordo realmente acabe, sendo acusado de apologia àquela aberração que o governo chama de ideologia de gênero.

Piadas à parte, não decidi ainda se defendo o Acordo, embora parte de mim, professor do idioma e escritor profissional, prefira que tudo fique como está, mesmo com todas as implicações políticas e geopolíticas dessa imposição acadêmica e de classe superior. Se eu pudesse aconselhar o congressista e o presidente, eu sugeriria parar o desmonte do Ministério da Educação, repensar a alfabetização: formar professores para que alfabetizem eficientemente, trazer a ciência pedagógica para o ensino das primeiras letra de vez. Mexer no idioma e retornar regras de há dez anos atrás não é eficiente e nem vai facilitar em nada. Ao contrário, o desgaste que foi experienciado por causa da implantação do Acordo ao longo da década, recomeçará. A língua nacional é e será sempre um assunto importante, mas o cuidado com ela pode bem começar alfabetizando com eficiência. As próximas gerações poderão pensar num novo acordo, com certeza. Agora, o melhor é pensar de fato em educação.

 

Alex Mendes

Alex Mendes é professor, graduado em Letras, Mestre em Letras e Linguística pela UFG. Reside em Goianésia, ensina língua portuguesa e inglesa na rede estadual de Goiás

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